quinta-feira, 29 de maio de 2014

Meu bem, meu mal

Se o petróleo do pré-sal não basta para garantir o desenvolvimento, tampouco é uma condenação
A coluna passada comparou a industrialização tardia na Ásia e na América Latina (AL), tendo por base o vindouro livro "Padrões de Desenvolvimento Econômico, Estudo Comparativo de 13 Países: América Latina, Ásia e Rússia".
Em síntese, alguns países da Ásia criaram uma indústria autônoma empresarial e tecnologicamente. Na AL, o capital estrangeiro e a competição de recursos naturais abundantes fizeram uma industrialização limitada e dependente, que tem sido revertida na maior parte da região.
No entanto, o corte continental não é homogêneo. Assim, começo a tratar de experiências nacionais.
Indonésia e México são países populosos --respectivamente, 240 milhões e 120 milhões de pessoas--, que descobriram grandes reservas de petróleo nos anos 1970, embora elas tenham perdido seu esplendor nas últimas décadas.
O México, cujo capítulo é do economista João Furtado, tinha reservas provadas de 50 bilhões de barris em 1995, que despencaram para 28 bilhões em 2000 e, hoje, são da ordem de 10 bilhões (ainda altas).
O farto petróleo gerou valorização cambial, deprimindo a competitividade da indústria mexicana, que tinha criado um diversificado parque metalomecânico nas décadas de 1960 e de 1970.
A partir de 1980, o esforço exportador para fazer frente à crise da dívida envolveu, além do petróleo, a expansão das maquiladoras, um tipo de indústria voltada ao exterior, em que pouco é feito localmente, em geral etapas intensivas em trabalho. Em particular após o Nafta, que favoreceu os bens que tivessem ao menos uma etapa feita no bloco, o México virou um canal de acesso aos EUA, com a vantagem de ter mão de obra mais barata. Porém, ao contrário da microeletrônica na Ásia, tal indústria não criou raízes.
Dependente do petróleo e dos EUA, o México, que chegou a ter no início dos anos 1980 cerca de 40% da renda per capita americana, voltou ao patamar de 25% de 1950.
A Indonésia, cujo texto foi feito pelos economistas Esther Dweck e David Kupfer, é uma exceção na Ásia por não sofrer com a escassez de recursos naturais, embora tivesse, em meados do século 20, como é a regra na região, uma enorme população rural empregada em atividades de baixa produtividade.
Nos anos 1970, houve o boom do petróleo, tendo a produção diária atingido mais de 1,5 milhão de barris frente a um consumo inferior a 500 mil. O aumento do consumo e a redução da produção fizeram o país se tornar deficitário desde 2004, com reservas provadas caindo de 16 bilhões para 6 bilhões de barris.
No entanto, ainda nos anos 1970, foi possível expandir uma indústria pesada, em especial de insumos metálicos, graças à estruturação de fundos de investimento com receitas do óleo e de ajudas externas da época da Guerra Fria.
O petróleo chegou a ser 75% das exportações. Porém, mesmo durante seu auge nos 1980, a Indonésia conseguiu diversificar a indústria de transformação, que, de 10% do PIB em 1971, representa atualmente cerca de 35% da economia.
Tal trajetória ocorreu graças à articulação com a economia japonesa, cujas firmas deslocaram para seus vizinhos parte da produção para exportação aos EUA, buscando salários menores para compensar a apreciação do iene após 1985.
Assim, a Indonésia continuou crescendo desde os anos 1980, mantendo sua média anual de mais de 5%, mesmo com a crise da Ásia em 1997, que foi forte no país em razão de sua acentuada e até então saudada liberalização financeira. O problema é que o país concentra atividades intensivas em trabalho e de baixa intensidade tecnológica.
A conclusão óbvia é que as riquezas naturais permitem um país escapar da miséria e, com sorte, até ser rico, mas representam um risco de longo prazo ao ameaçar a indústria de transformação.
Menos óbvio é que --embora a Indonésia seja um país mais pobre, que em 2008 tinha 27,4% da renda per capita mexicana-- ela conseguiu evitar que os recursos naturais se tornassem uma maldição à indústria, ainda que sua diversificação produtiva esteja ligada à liderança do Japão e, depois, da China.
Para o Brasil, a lição parece ser que, se o petróleo do pré-sal não basta para garantir o desenvolvimento, tampouco é uma condenação para que o país seja só um fornecedor global de matérias-primas. marcelo.miterhof@gmail.com

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Tragédia

ANTONIO DELFIM NETTO
Os excelentes economistas Carlos Antônio Rocca e Lauro dos Santos Junior, do Centro de Estudos do Mercado de Capitais do Ibmec (Cemec), acabam de divulgar um trabalho fundamental para o entendimento do que está acontecendo no cerne da economia brasileira, "Investimentos das Companhias Abertas e seu Financiamento no Período 2005 a 2013". A tradição dos estudos dos ilustres professores é de ir à economia quantitativa realmente séria. Vão à "salsicha" para ver como ela é feita. Não se perdem nas receitas de como elas deveriam ser feitas, que tanto encantam os neoliberais e heterodoxos que infestam o cenário econômico nacional.
As contas nacionais dos últimos anos revelam uma taxa de investimento em níveis próximos de 20% do PIB no período 2010-2011, reduzida para 18% em 2013 (menos 2%). A taxa de poupança doméstica caiu ainda mais no mesmo período: de 17% para 14% (menos 3%), o menor nível desde 2002. Isso sugere que o aumento do consumo doméstico foi financiado pela poupança externa: o deficit em conta corrente aumentou de 2,5% do PIB em 2011 para 3,6% em 2013.
Em trabalho anterior os mesmos economistas mostraram que a maior parte da queda da poupança interna não resultava da redução da poupança das famílias, mas, essencialmente, da queda da poupança das empresas evidenciada na redução do importante fluxo dos lucros retidos, fundamental para financiar os investimentos. O novo trabalho tenta quantificar em que medida as companhias abertas, não financeiras, contribuíram para aqueles resultados, a partir de uma análise dos dados obtidos com a consolidação de balanços das empresas que compõem a base de dados da consultoria Economática.
Estudos como esse são sempre sujeitos a "armadilhas" metodológicas que os autores identificam e procuram evitar. A conclusão mais importante é que "as empresas abertas não financeiras reduziram sua poupança e investimento de forma ainda mais acentuada que o conjunto das empresas não abertas". E que, "em geral, optaram em reduzir os investimentos, manter a distribuição de dividendos, reduzir a participação de recursos próprios e aumentar suas dívidas para financiar os menores investimentos", o que terá graves consequências sobre o crescimento futuro. O gráfico abaixo resume a tragédia.
Folha, 21.05.2014

Capitalismo de balcão

HÉLIO SCHWARTSMAN
SÃO PAULO - O assim chamado capitalismo está longe de ser um sistema perfeito ou mesmo bom, mas ele decerto promove mais eficiência e cria mais riqueza do que todas as alternativas até hoje experimentadas. Só que, para funcionar a contento, ele depende da existência de agentes livres para produzir e consumir o que lhes pareça melhor.
É desta parte que muitos no Brasil ainda não se convenceram. Parcela não desprezível do empresariado e de guildas profissionais, em vez de oferecer produtos e serviços que as pessoas queiram adquirir e contratar, prefere pegar carona na autoridade do Estado e, através de leis e portarias, criar um mercado cativo e sem riscos. É o capitalismo de balcão.
Nesse contexto, só posso aplaudir a decisão do governo Dilma Rousseff de adiar por mais 24 meses a obrigatoriedade de as montadoras incluírem nos veículos novos o tal do rastreador, um chip de localização e bloqueio que pode ser acionado em caso de furto. A engenhoca encarece o carro em cerca de R$ 700. O problema é que, para funcionar, o proprietário precisa contratar os préstimos de uma empresa especializada. Ou seja, a peça gera um ônus para o consumidor e pode não servir-lhe para nada. É muito mais lógico, portanto, que só quem realmente queira o serviço compre o rastreador.
Essa foi mais uma esperteza de fabricantes de chips e seguradoras sancionada pelo Contran, o mesmo Conselho Nacional de Trânsito que, alguns anos atrás, fez todos os donos de carros carregarem um inútil kit de primeiros socorros composto por gaze, luvas e esparadrapo.
O problema, infelizmente, não está limitado a essa esfera. Quem não se lembra do golpe da tomada, pelo qual, numa só canetada, nos fizeram ou trocar todas as tomadas da casa ou adquirir adaptadores? Na mesma linha, sindicatos adoram criar obrigatoriedades que exigem a contratação de um de seus associados. Pobres dos brasileiros. Folha, 21.05.2014