quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Análise: Entenda o que fez balançar mercados globais

GILLIAN TETT - DO "FINANCIAL TIMES" - 17/10/2014  02h00


Três dias atrás, Guy Debelle -um dos principais dirigentes do BC australiano- previu que os mercados estavam se encaminhando a um período de intensa instabilidade, porque os investidores estavam sendo ingênuos sobre os riscos estruturais.
Número "considerável" deles, observou Debelle, presumia que poderia se livrar de suas apostas antes que surgisse uma onda de vendas. "A história nos ensina que essa estratégia em geral não obtém sucesso", ele advertiu. "A saída tente a ficar superlotada rapidamente."
Um dia mais tarde, sua previsão se confirmou. A volatilidade da quarta-feira explodiu nos mercados, levando os preços dos títulos do Tesouro dos EUA a oscilar violentamente e os dos títulos e ações europeus a se movimentarem de modo brusco.
As oscilações demonstraram que a questão da "liquidez" -a facilidade de negociar os ativos- tem imensa importância. O que é preocupante é que a liquidez parece ter decrescido. Para citar Debelle, "isso não fica evidente em um mercado em alta, quando os ativos estão sendo comprados, mas rapidamente se tornará aparente em um mercado em baixa".
Para quem não trabalha no setor financeiro, pode parecer estranho. Desde a crise de 2008, os bancos centrais despejaram imensos volumes de dinheiro -a depender da forma de cálculo, de US$ 7 trilhões a US$ 10 trilhões.
Mas o problema da "liquidez" é que a existência de muito dinheiro no sistema não garante que os fundos fluam livremente. Um sistema inundado de dinheiro pode se congelar, às vezes.
Em alguns casos isso ocorre porque os investidores perdem a fé uns nos outros e deixam de operar, como aconteceu em 2008. Mas os mercados também podem se tornar ilíquidos porque é difícil aproximar compradores de vendedores -foi o que causou as loucas oscilações de preço dos títulos do Tesouro norte-americano e outros papéis, nesta semana.
Existem pelo menos quatro razões por trás do atual problema de liquidez. A mais simples é a unanimidade nas visões dos investidores. Uma pesquisa da Bloomberg na semana passada revelou que 100% dos economistas consultados (sim, 100%) previam que as taxas de juros dos EUA subiriam em breve.
Quando os investidores se desanimaram com as perspectivas econômicas depois da reunião do FMI, no fim da semana passada, muitos tentaram inverter as posições de mercado ao mesmo tempo.
Um segundo motivo é que os administradores de ativos estão mais propensos a um comportamento de rebanho -o que complica o desafio de aproximar compradores de vendedores. Isso porque os investidores cada vez mais usam referenciais parecidos para balizar desempenho.
Há também uma concentração grande de administradoras de fundos. Nos mercados emergentes, por exemplo, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) estima que as 20 maiores administradoras detenham 30% de todos os títulos e ações -nível duas vezes mais alto do que o de uma década atrás.
Uma terceira questão é o crescente uso de programas de computador para executar operações. Em teoria isso tornaria os mercados mais líquidos, porque eles podem casar operações em todo o planeta em velocidade incrível. Mas eles tendem a operar de modo parecido: como os seres humanos, se movimentam em rebanho, o que intensifica o desequilíbrio.
Mas a questão mais espinhosa é a regulamentação. No passado, os grandes bancos de investimento muitas vezes promoviam o contato entre compradores e vendedores, porque detinham grandes carteiras de títulos.
Mas de 2008 para cá eles reduziram essas carteiras em entre 30% e 80% (a depender da classe de ativo) para atender a regras mais severas. Isso reduziu a sua capacidade para agir como formadores de mercado, e eliminou os amortecedores do sistema.
Existe solução? Os dirigentes de bancos centrais já debateram se órgãos governamentais deveriam agir como formadores de mercado em uma crise. As autoridades estão tentando limitar os programas automatizados, e o Serviço de Pesquisa Financeira dos EUA está tentando monitorar melhor os rebanhos de investidores.
Há uma implicação enervante: ainda que o sistema bancário possa estar mais seguro do que em 2008, partes dos mercados podem ter se tornado mais perigosas para os investidores incautos, por causa de todos os rebanhos.
Ou, para expressar de outra forma, o ponto mais importante nas oscilações de preço desta semana é que elas talvez sejam apenas um aperitivo do que poderia acontecer quando os bancos centrais enfim voltarem a elevar os juros (em lugar de só falarem incansavelmente nisso). Que os investidores fiquem avisados. Folha, 17.10.2014.
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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ANTONIO DELFIM NETTO: Salve o Nobel

O estudo do funcionamento econômico da sociedade pode ser convenientemente dividido em dois ramos: a macroeconomia e a microeconomia.
A macro procura entendê-lo e criar instrumentos para que seu administrador (o governo eleito periodicamente) possa produzir um bom equilíbrio interno e externo. Durante muito tempo os economistas acreditaram --e alguns ainda acreditam-- que, com uma adequada âncora cambial (o "padrão ouro"), o sistema deixado a si mesmo ("laissez faire") produziria "naturalmente" aqueles equilíbrios. A variável de ajuste "natural" era o aumento do desemprego e a redução do salário real, que se tornou politicamente inaceitável pelo avanço do sufrágio universal.
Mas o fato importante é que mesmo uma macroeconomia virtuosa não garante uma alocação eficiente dos fatores de produção disponíveis se não forem dados estímulos adequados aos agentes econômicos. Quem cuida do crescimento e sugere instituições e mecanismos que aumentam a produtividade de todo o sistema econômico é a microeconomia. Ela tem avançado dramaticamente desde a exploração do uso da teoria dos jogos, da teoria dos leilões e dos estudos sobre a formação de preços em mercados especiais, onde há necessidade de submeter à maior concorrência monopólios e oligopólios de forma a proteger os consumidores com bons serviços e "modicidade tarifária". Esta aproximação da teoria com a realidade foi, justamente, premiada com o Nobel de economia de 2014 a Jean Tirole.
O governo Dilma chegou ao diagnóstico correto em 2011 quando anunciou que a aceleração do investimento público era a boa saída para a volta ao crescimento. Foi lento, entretanto, em entender que o sucesso das concessões de infraestrutura, por serem transferências de monopólios públicos para o setor privado, envolvem contratos necessariamente "abertos" que duram de 20 a 30 anos e exigem: 1) bons projetos executivos que especifiquem claramente a qualidade dos serviços que se espera delas ao longo do tempo; 2) a construção de leilões adequados --tarefa de profissionais especializados-- para estabelecer a taxa de retorno e 3) agências reguladoras de Estado competentes e estáveis para garantir a integridade econômica e financeira dos contratos. Quando se nomeia um "companheiro de passeata" para uma agência de Estado aumenta-se o "risco" da concessão e, portanto, sua taxa de retorno.
É por isso que talvez ninguém tenha mais necessidade do que o governo brasileiro de aprender na obra fundamental do novo Nobel sobre a formação de preços em mercados especiais. A presidente Dilma precisa incorporar Tirole às suas leituras após domingo...
Folha, 22.10.14.
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quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Candidato

ANTONIO DELFIM NETTO

É fato que a economia brasileira: 1) perdeu o vento de "cauda" da conjuntura mundial que a impulsionou de 2003 a 2010, mas mudou de direção em 2011, dificultando o seu crescimento; 2) tem um deficit em conta corrente insustentável de US$ 80 bilhões por ano (3,5% do PIB) devido ao uso da taxa de câmbio para controlar a inflação; 3) e sofre os inconvenientes da taxa de câmbio valorizada que são muito superiores aos seus eventuais benefícios na redução da taxa de inflação.

Esta continua a namorar o limite superior de tolerância da meta (6,5%), mas, obviamente, não está fora de controle e 4) por tudo isso, paga o preço de um crescimento minúsculo (talvez 1,7% ao ano em 2011-2014) que, pelo menos em parte, é responsável pela desconfortável situação fiscal, mas que está longe de ser apocalíptica.
Começamos a tomar consciência de que as desejadas políticas de inserção social, redução das desigualdades e ênfase no aumento da igualdade de oportunidades, ínsitas na Constituição de 1988, criaram uma modesta mas numerosa classe "média" em um mercado de 200 milhões de cidadãos. Para que elas continuem com sucesso, é preciso voltar a crescer com melhor equilíbrio. Seguramente esse é um problema menos difícil do que a quadratura do círculo com régua e compasso, mas está muito longe de ser trivial.
O que é, afinal, esse fenômeno a que damos o nome de desenvolvimento? É apenas o codinome do aumento da produtividade do trabalho. Ele depende de muitas coisas: do tratamento e dos estímulos dados a cada trabalhador e aos empresários, do ambiente de trabalho, da disposição de cooperação efetiva de cada um no processo global etc.
Mas depende de duas condições necessárias (ainda que não suficientes): 1) é preciso alocar a cada trabalhador um volume crescente de capital físico (por exemplo, trocar um arado puxado a boi por um trator) que incorpore ganhos tecnológicos e 2) é preciso dar a cada trabalhador a capacidade, isto é, o preparo técnico, para tirar proveito da sofisticação do estoque de capital que lhe é alocado.
Simplificando: desenvolvimento econômico = aumento da produtividade da mão de obra = mais capital físico com sofisticação crescente para cada trabalhador associado ao seu preparo técnico para operá-lo.
Como fazer isso sem a cooptação dramática do setor privado depois que a política de inclusão empregou toda a mão de obra com pequenas habilidades e baixa produtividade, logo, com baixos salários (o que explica o "mistério" do baixo crescimento do PIB com baixo desemprego)? A resposta cabe aos dois candidatos. Folha, 15.10.14.