quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A primeira vítima

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

Afirmar que as contas públicas estão organizadas é um acinte; na eleição, a primeira vítima é a verdade

Vários dos 18 leitores devem ter suas contas domésticas agendadas para pagamento por débito automático. Nesse caso, o banco costuma realizar o pagamento mesmo quando os fundos não são suficientes, desde que o cliente tenha acesso ao chamado "cheque especial", que, aliás, sugiro fortemente ser evitado a todo custo.
De fato, quem precisa usar o "cheque especial" para pagar as despesas do mês por causa de eventuais insuficiências de fundos tem certeza absoluta de que gastou mais do que poderia.
Caso reste ainda alguma dúvida, a chegada da fatura dos juros cobrados sobre saldo insuficiente deve ser mais do que o bastante para convencer o cidadão de que ele deve dinheiro ao banco e que é bom tratar de cobrir o buraco o mais cedo possível, antes que a bola de neve termine por crescer além do sustentável.
Aparentemente, contudo, o governo federal não se considera sujeito ao mesmo tipo de regra. Conforme noticiado pela imprensa, o Tesouro Nacional não tem depositado recursos nas contas de seus agentes financeiros (Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, BNDES) para cobrir algumas das suas despesas agendadas para "débito automático".
Isso não faz nenhuma diferença para os beneficiários finais (os que recebem, por exemplo, dinheiro dos programas sociais) porque os bancos federais fazem o pagamento em nome do governo, mesmo quando os recursos não são suficientes.
A contrapartida disso, porém, é o aumento do endividamento do governo federal com seus bancos. E, como ocorre com toda dívida, sobre ela incidem juros a serem eventualmente pagos pelo Tesouro Nacional, ainda que não tão elevados quanto os associados ao "cheque especial".
Ao contrário do cidadão comum, porém, pelos critérios da contabilidade pública, nem os gastos cobertos pelos bancos federais aparecem entre as despesas nem o saldo negativo dessas contas é classificado na dívida governamental. Sabedor disso, o Tesouro ganhou uma "licença para gastar", conhecida no jargão como "pedalada", nome que me causa imensa tristeza dada a minha condição de ciclista amador.
Posto de outra forma, os bancos federais financiam o governo, isto é, emprestam-lhe dinheiro, prática em tese proibida pela LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e que, anos atrás, esteve na raiz da quebra em série dos bancos estaduais.
Há, é bom que se diga, ainda discussão para saber se a operação descrita acima se encaixa no rol de operações vedadas pela LRF (acredito que sim, porém não sou especialista na parte legal), mas resta pouca dúvida de que o espírito da coisa contraria frontalmente as boas práticas de gestão fiscal.
A começar pela falta de transparência. Não se trata da primeira vez (nem certamente a última) em que o Tesouro Nacional é pego às margens das normas contábeis, disfarçando de forma nada dis- creta resultados fiscais bem aquém das metas fixadas pelo próprio governo federal. Isso só serve para aumentar o descrédito quanto às estatísticas públicas, um retrocesso considerável nos nossos padrões de governança.
Além disso, porém, o fato é que --mesmo sem terem sido contabi- lizados-- os gastos ocorreram, assim como seus efeitos sobre a ati- vidade econômica, a inflação e demais variáveis de interesse. Em particular, a inflação no teto da meta (quando não acima dele) se deve, em boa parte, precisamente às persistentes estripulias com as contas públicas.
A verdade é que a política fiscal, apesar das promessas de austeridade do governo e dos supostos cortes de gastos anunciados no começo do ano, tem sido não apenas bem mais frouxa do que a observada no ano passado mas ainda pior do que os números oficiais nos mostram.
Nesse contexto, a afirmação do ministro da Fazenda ("As nos- sas contas públicas estão absolutamente organizadas") chega a ser um acinte aos que têm por ofício acompanhar nosso desempenho fiscal. Assim como na guerra, na época de eleição a primeira vítima é a verdade. Folha, 27.08.2014.

Uma ideia simples

Campanhas eleitorais em torno de pesquisas levam a sopa de números, que tal discutir propostas?
Todos os candidatos prometem crescimento e austeridade. Entre os chavões mais batidos vem sempre a reforma tributária, tema complexo, chato mesmo, acaba sempre em parolagem. Promete-se a simplificação das leis que regulam os tributos, e a cada ano eles ficam mais complicados. Uma coletânea da legislação brasileira pesa seis toneladas. Aqui vai uma contribuição, trazida pelo Instituto Endeavor. Relaciona-se com o regime de cobrança de impostos de pequenas empresas, aquelas que faturam até R$ 3,6 milhões por ano (R$ 300 mil por mês). É o Simples --pode-se estimar que ele facilita a vida de algo como 3 milhões de empresas ativas.
Seu mecanismo, como diz o nome, é simples. Em vez de pagar sete impostos, cada um com suas guias, o empresário desconta entre 4% e 12% do seu faturamento. Ao fim do ano, quem faturou no limite de R$ 3,6 milhões terá pago à Viúva R$ 435 mil. Há poucas semanas, numa iniciativa benfazeja, a doutora Dilma expandiu esse regime, aliviando centenas de milhares de profissionais liberais, com alíquotas de até 16%.
O problema surge exatamente na hora em que a empresa trabalha direito, cresce e fatura além do teto. Quem comete essa imprudência é mandado ao inferno dos outros regimes tributários. Numa simulação, resulta que sua conta sobe para algo entre R$ 652 mil e R$ 727 mil. Com uma margem de lucro de 10%, arrisca ir para o ralo.
Como ninguém trabalha para pagar mais impostos, acontece o óbvio. O empresário desiste de crescer ou vai para a informalidade e, daí, para a sonegação. Desde que o rei da Itália pôs fiscais na orla marítima para vigiar as mulheres que iam ao mar para buscar água para ferver o macarrão (o sal era monopólio do Estado), sabe-se de poucas irracionalidades parecidas.
O Brasil tem 4,5 milhões de empresas grandes, médias e pequenas. Delas, entre 2008 e 2011, cerca de 17 mil pequenas cresceram 20% ao ano durante três anos seguidos. É provável que tenham gerado 300 mil empregos, 10% da massa criada no período. Quase todas estavam no Simples, muitas delas às portas do inferno do sucesso.
Se começar hoje uma discussão em torno da elevação do teto de faturamento do Simples, chega-se a algum lugar. No mínimo, reconhece-se que a mudança abrupta, derivada do êxito, não faz sentido. Pode-se criar uma escadinha. Pode-se relacionar o benefício ao número de empregos criados, pode-se fazer qualquer coisa, desde que se tenha na cabeça que o crescimento de uma empresa é um benefício para a sociedade.
Os impostecas do governo certamente dirão que uma iniciativa dessas reduzirá a arrecadação. Isso poderá acontecer num primeiro momento, mas o que engorda a bolsa da Viúva não é apenas a cobrança de mais impostos, é o crescimento da economia.
O imperador Tibério ensinava que suas ovelhas deviam ser tosadas, e não escalpeladas. Se a empresa for para a sonegação, à espera de uma anistia parcial disfarçada (pode me chamar de Refis), todos perdem. Ademais, é preferível abrir mão de alguma arrecadação com um alívio genérico do que ficar distribuindo benefícios para grandes empresas com grandes amigos no Planalto ou no Congresso, colocando gatos nas tubas das medidas provisórias. Folha, 27.08.2014.

Estratégia

ANTONIO DELFIM NETTO

A sociedade brasileira está mais perplexa do que deveria: o que está acontecendo estava escrito na resposta a uma política de combate à inflação apoiada na valorização da taxa de câmbio e na ação monetária sem suporte nas contas públicas. E está menos preocupada do que deveria.

Hoje já pode avaliar os seus resultados quando comparados o quadriênio atual (de 2011 a 2014) com o anterior (de 2007 a 2010): 1) uma redução do crescimento acumulado do PIB de 19,6% para 7,4%, uma queda de 60%; 2) uma ampliação da taxa de inflação acumulada de 22,0 para 27,0%, um aumento de 20%; e 3) uma deterioração do deficit em conta corrente acumulado de US$ 98,2 bilhões para US$ 268 bilhões de dólares, um aumento de 170%.
É claro que uma análise objetiva exige que tais números sejam relativizados pela continuidade do processo civilizatório de inclusão social, pela redução do crescimento mundial (5% em média, de 2005-07 --antes da crise--, e 3,5% em 2011-13) e pelo esforço do ajuste de 2011 quando, para amainar a euforia de 2010, a presidente Dilma Rousseff aumentou a taxa de juros, reduziu o deficit fiscal e mostrou que estava disposta a enfrentar algumas reformas, como se viu na aprovação das regras de aposentadoria do funcionalismo público.
A situação piorou a olhos vistos desde o início de 2012, quando se acentuou a queda do PIB mundial e ficou claro que o Brasil cresceria muito pouco. A resposta intempestiva do governo foi baixar os juros (a taxa Selic veio de 11% para 7,25%) ao qual a taxa de câmbio respondeu com uma desvalorização de 17%.
Tomaram-se medidas pontuais e realizaram-se intervenções setoriais que, por não revelarem uma proposta global consistente, criou uma enorme desconfiança e assustou o "espírito animal" dos empresários que reduziram os investimentos.
O ano revelou-se realmente muito difícil: crescimento do PIB de 1%; taxa de inflação de 5,8% e deficit em conta corrente de US$ 54,2 bilhões.
Em 2013, as preocupações com a falta de comunicação de uma "estratégia" compreensível aumentaram e separaram o setor produtivo privado do poder incumbente. A taxa Selic voltou a subir e a taxa de inflação ficou aonde estava. O PIB brasileiro cresceu 2,5%, mas o deficit em conta corrente chegou aos incríveis US$ 81,4 bilhões.
A despeito do grande esforço do governo e do seu evidente aprendizado, o ano de 2014 está dado: vamos crescer em torno de 1%; a inflação vai continuar a namorar o limite de tolerância da "meta" e vamos repetir o deficit em conta corrente de US$ 80 bilhões. Folha, 27.08.2014.
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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Produzir no Brasil é 23% mais caro do que nos EUA: Aumento da custo da mão de obra industrial explica diferença, diz estudo

Baixa eficiência também pesa para indústria brasileira; emergentes como China e México têm custo inferior

ÉRICA FRAGADE SÃO PAULO
A capacidade de competição da indústria brasileira sofreu uma reviravolta negativa na última década.
Hoje, o custo de produzir no Brasil é 23% maior do que nos Estados Unidos. Em 2004, era 3% inferior.
A conclusão é de um estudo recém-divulgado pela consultoria The Boston Consulting Group (BCG).
A pesquisa comparou os custos de produção dos 25 principais países exportadores do mundo.
Além dos Estados Unidos, o custo de produção no Brasil ultrapassa, significativamente, o de outros países emergentes, como China, Índia, México e Rússia.
A consultoria analisou os custos de produção dos 25 países levando em conta quatro fatores: salários na indústria, produtividade do trabalho, custo de energia e taxa de câmbio.
Segundo o BCG, o Brasil perdeu competitividade em todos os quesitos analisados.
Com isso, o custo de produção da indústria no país aumentou 26% em relação ao dos EUA entre 2004 e 2014.
Salários mais elevados combinados com um crescimento muito fraco da produtividade explicam três quartos desse aumento.
O BCG ressalta que os salários pagos na indústria mais do que dobraram ao longo da última década.
O problema, segundo a consultoria, é que essa tendência não foi acompanhada por um aumento significativo da produtividade dos trabalhadores brasileiros.
Um forte ganho de eficiência teria permitido às empresas conseguir um aumento de sua capacidade de produção suficiente para cobrir os maiores custos trabalhistas. Mas a produtividade cresceu apenas 1% ao ano no período analisado.
O lento aumento da eficiência é explicado por fatores como baixa oferta de mão de obra qualificada, falta de investimento, infraestrutura inadequada e burocracia excessiva.
A consultoria afirma ainda que o forte aumento do preço da eletricidade para a indústria --que dobrou na última década-- e o maior custo do gás natural também contribuíram para erodir a capacidade de competição do setor no país.
SOB PRESSÃO
De acordo com a tendência do custo de produção ao longo da última década, o BCG classificou os países em quatro grupos.
Os que se encontram em situação mais crítica foram chamados de "sob pressão". É nesse grupo que o Brasil foi incluído, ao lado de China, Rússia, República Tcheca e Polônia. Entre os cinco, o Brasil foi o que teve o maior aumento de custo de produção, segundo o BCG.
No outro extremo, entre as chamadas "estrelas emergentes globais", estão México e Estados Unidos. A competitividade dos dois países foi impulsionada por fatores como baixo aumento dos salários e ganhos de produtividade.
O relatório ressalta que o mundo deixou de ser dividido em continentes competitivos versus caros.
Atualmente, há casos de países muito competitivos e outros nem tanto em todos os continentes. Segundo o BCG, isso deve guiar as decisões de investimento no futuro.
A consultoria prevê que a produção industrial deve se tornar cada vez mais regionalizada, centrada nos países mais competitivos de cada uma das regiões. 20.08.14
Ano da indústria está perdido, afirma CNI