quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A MÃO INVISÍVEL

A garantia dos direitos individuais não acaba com a necessidade de as pessoas se organizarem coletivamente
A mão invisível é a mais interessante ideia tratada no livro "Sete Ideias Ruins: Como os Economistas Convencionais Prejudicaram os EUA e o Mundo", de Jeff Madrick.
Seu intuito é descrever como compradores e vendedores interagem livremente no mercado para alcançar o preço que equilibra as preferências dos consumidores, frutos de necessidades e desejos, e os custos (ou as dificuldades) de atendê-las.
Madrick destaca que Adam Smith, o criador do termo, usou-o só uma vez no livro "A Riqueza das Nações", o que bastou para a imagem fazer a cabeça de muita gente.
Expressão cunhada em 1776, ano da Independência americana e pouco antes da Revolução Francesa, quando a individualidade ganhava força, começando a libertar o mundo dos grilhões das relações tradicionais, a mão invisível foi útil para reforçar a convicção moral de que agir segundo o que é um estrito interesse individual acaba sendo o melhor para coletividade.
A beleza da metáfora vem da perfeição que o mercado parece por natureza ter: descentralizado, automático e eficiente. O sucesso do capitalismo em elevar a produtividade e em criar novos bens e serviços parece corroborar essa impressão.
Então, por que a mão invisível é uma ideia ruim? Um problema é que ela supõe que os preços de mercado são capazes de sintetizar os estímulos do capitalismo.
De fato, o preço é um bom regulador da escassez de curto prazo. Se o conjunto de pessoas procura por um bem mais do que existe de oferta, seu preço subirá. Com isso, parte dos consumidores, conforme a intensidade de suas preferências e suas possibilidades de gasto, perderá interesse no bem, equilibrando demanda e oferta. Adicionalmente, os produtores são incentivados a elevar a produção e, se necessário, investir para ampliar a capacidade produtiva desse produto. O inverso vale para o caso de um excesso de oferta.
Tal mecanismo descreve adequadamente mercados de bens perecíveis, como o de peixe na feira. Porém fica menos poderoso se é possível estocar. Joseph Schumpeter mostrou que esse é um de vários "freios" à concorrência. Outros exemplos são marcas, volume de investimentos para iniciar uma produção etc.
Esses freios são em certa medida bons para o capitalismo. Ao conferirem poder de mercado --a capacidade de fixar preços acima do que ocorreria num mercado "perfeitamente" competitivo--, permitem gerar recursos para investir em inovações, assumindo riscos para tentar encontrar novas formas de se diferenciar dos concorrentes (ou para tirar a vantagem obtida por um inovador prévio), por exemplo, criando novos produtos ou novas tecnologias que diminuem custos.
Nesse jogo de diferenciação e "desdiferenciação" entre produtores, a concorrência se mostra mais fidedigna à realidade e mais frutífera do que no simples mecanismo alocativo da mão invisível.
A mão invisível também ignora o papel do Estado no complexo jogo competitivo. As compras estatais, as universidades, a política externa, os bancos públicos são formas de alavancar o poder inovador das empresas de um país. A inovação é uma atividade arriscada e dispendiosa. Os esforços podem ser malsucedidos. No balanço de uma firma, costuma não valer a pena assumir riscos por prazo muito longo. Esse é um risco assumido pela coletividade, casos clássicos dos gastos militares --que nos EUA criaram a internet, o GPS etc.-- e do desenvolvimento de medicamentos para a saúde pública.
Quer dizer, a mão invisível promove desarticulação artificial entre mecanismos competitivos e cooperativos. Em doses variadas, eles estão sempre presentes nas interações humanas. Mesmo num casamento há competição (pelo afeto dos filhos, por exemplo) e entre comerciantes a cooperação não é de todo excluída, como quando uma rua é conhecida por abrigar lojas do mesmo ramo.
A mão invisível teve um papel na fundação da modernidade. Mas ela esconde que a garantia dos direitos individuais não acaba com a necessidade de os seres humanos se organizarem coletivamente. Aliás, o mercado também é uma forma de organização coletiva (ninguém se faz sozinho). O desafio da democracia é como fazer o balanço entre competição e cooperação para promover eficiência e igualdade, dois requisitos da busca por mais liberdadeDedico a coluna às memórias dos ministros Adib Jatene e Márcio Thomaz Bastos. Quanta falta nos farão! MARCELO MITERHOF.  Folha, 27.11.2014.

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